Mulheres Negras do Brasil – Exposição

 

2 – Apresentação

A realização do projeto Mulheres Negras do Brasil significou um intenso mergulho em contundentes silêncios da historiografia brasileira. Saltos foram dados à procura das personagens femininas de origem africana. Nas profundezas do oceânico esquecimento nacional, buscou-se garimpar representações, imagens, cenários e contextos daquelas que foram determinantemente co-responsáveis pela construção do país. Largas braçadas foram dadas entre o passado e o presente. A esperança transformou-se em fôlego e bússola para se chegar as memórias que repousavam submersas pelas visões etnocêntricas, abordagens míopes que prevaleceram por séculos na maneira de contar a história do Brasil. Durante os últimos três anos tentou-se recuperar nomes, procedências, trajetórias e tradições. Foram mais de cem instituições contatadas nas diferentes regiões do país e dezenas de arquivos públicos e bibliotecas reviradas. Constatou-se que é gritante a ausência de registros sobre a participação das afro-descendentes na formação do Brasil.

Diante destes vazios e esquecimentos que, já há muito tempo, causa incomodo e chama atenção, projetou-se também esta modesta exposição. Nela apresenta-se um brevíssimo resumo do que foi reunido no livro Mulheres Negras do Brasil, no qual estão disponibilizadas imagens e informações que permaneciam esparsas em acervos institucionais, coleções particulares, livros, teses, periódicos e na lembrança das pessoas. Em quatro grandes capítulos, estão reproduzidos cerca de 950 documentos iconográficos selecionados entre os milhares levantados. São pinturas a óleo, aquarelas, gravuras, desenhos e fotografias que revelam identidades e embelezam a obra.

Espera-se que o resultado deste empenho represente um sopro de incentivo a mudança de mentalidade e a superação de preconceitos, mesmo que modestamente, possa contribuir positiva e diretamente para o combate às atitudes discriminatórias. E ainda, muito especialmente, espera-se com este projeto estimular a realização de novas pesquisas, novos desdobramentos, que somados a este, possam servir de referência, pois é impreterível e imperiosa a necessidade de disponibilizar dignamente para as próximas gerações, dados fundamentais ao entendimento e à justa valorização das múltiplas funções exercidas pelas mulheres de origem africana na história do Brasil.

Por certo este é um mosaico incompleto, uma iniciativa aberta e viva. Que seja este apenas um mergulho, outros se seguirão sempre mais profundos e melhor orientados com a inclusão de novas fontes, críticas e correções.

3 – Elas nos primeiros séculos do Brasil

Em janeiro de 1454, o papa Nicolau V reconhecia na bula Romanus Pontifex a posse dos territórios africanos “descobertos” pelo reino de Portugal. Esse documento determina que os “muitos habitantes da Guiné e outros negros” deveriam ser convertidos à fé cristã e poderiam ser capturados, conquistados, subjugados ou lançados à “escravidão perpétua”.

Estima-se que aproximadamente 15 milhões de pessoas oriundas dos mais diversos grupos étnicos, vilas e cidades do continente africano foram trazidas para as Américas na condição de escravizados. No Brasil, entre meados do século XVI e a década de 1850, chegaram cerca de quatro milhões de homens e mulheres para trabalharem na construção e no desenvolvimento de cada uma das regiões do país.

Dentre as diversas funções que as mulheres de origem africana exerceram, o ir e vir das quitandeiras no comércio ambulante, foi uma das atividades mais retratadas na produção iconográfica dos primeiros quatro séculos. Essas personagens anônimas remontaram na diáspora o universo de cores, sons, mistérios, aromas e sabores que guardavam na memória. Foram elas, as negras, com seus cestos e tabuleiros que ocuparam maciçamente os caminhos, ruas, praças e mercados das primeiras vilas e cidades brasileiras.

Deste outro lado do Atlântico, assim como em Lisboa, as africanas ajudaram a estruturar e reorganizar sociedades que entre si articulavam estratégias de resistência. Fundaram quilombos e mocambos, instalaram negócios e estabeleceram continuamente redes de comunicação entre os três continentes.

4 – Abolindo o Império

Os reagrupamentos dos diversos povos de procedência africana e suas inumeráveis ramificações aconteceram, principalmente, através de seus parentescos lingüísticos. Ao longo dos tempos, foram genericamente distinguindo-se como nações, as quais não se caracterizaram obrigatoriamente como linhagens, territórios, tribos ou reinos precisos de origem.

As africanas e depois suas descendentes, empreenderam diferentes ações de resistência ao sistema escravista. Algumas coletivas e mais diretas, como rebeliões e formação de quilombos, outras, estratégias mais elaboradas, como fugas e compra de alforrias. Apesar dos poucos direitos que contavam, foram identificando as brechas abertas na legislação e freqüentemente levaram os exploradores escravocratas aos tribunais.

As irmandades religiosas instituídas pela Igreja, oficialmente liberadas e estimuladas entre a população negra, também funcionaram como espaço de resistência e manutenção das diferentes tradições africanas. Embora na diáspora tenham ocorrido inter-relações e integrações étnicas determinantes e estruturais, alguns grupos conservaram de modo predominante a memória mítica de seus povos.

A continuidade e reprodução de seus saberes e ritos se sustentaram, na essência, por transmissão oral, de geração em geração. Estabeleceram analogias, incorporaram experiências e reedificaram o caráter primordial, universal e perene de suas tradições. Apesar de enfrentarem perseguições extremas durante séculos, as comunidades negras organizadas ao redor das chamadas famílias de santo, foram capazes de resistir e preservar vivas suas cosmogonias, seus ritos e símbolos de imensurável valor.

Inúmeras foram as mulheres anônimas, escravizadas e forras, iabás e sacerdotisas, devotas e santificadas, benzedeiras e parteiras que inventaram, recriaram e experimentaram em seus afazeres cotidianos diferentes maneiras de sentir e imprimir outros significados para os termos esperança e liberdade.

5 – Rasgando os panos

Tanto na primeira Constituição brasileira de 1824, quanto na Carta Magna republicana de 1891, o sufrágio figurava como possibilidade de poucos. Embora não explicitada nas leis, a exclusão do direito ao voto de alguns segmentos, na pratica, era um fato. Entre esses, o contingente feminino da população e a grande maioria das pessoas de ascendência africana. Na época havia o entendimento implícito de que o mundo da política não era “lugar de mulher”, assim como os pré-requisitos de escolaridade e renda dos eleitores afastavam a maior parte do povo das urnas.

As mulheres alcançaram o direito de votar em 24 de fevereiro de 1932. Entretanto, o executivo e o legislativo brasileiro, em todas as suas instâncias, ainda hoje revelam o sexo e a cor historicamente predominante. Os percentuais de variação de gênero e raça na representatividade popular demonstram que muito pouco mudou nestas últimas sete décadas. Todavia, cada vez mais, ressalta-se a participação e a militância sociopolítica das afro-descendentes. São elas que vêm contribuindo determinantemente para que se insira na pauta e na agenda nacional, ações verdadeiramente eficazes para a conquista da tão esperada igualdade social.

Os diversos palcos culturais e os múltiplos cenários artísticos, assim como os pódios esportivos, revelaram ao mundo ícones femininos afro-brasileiros. Foram e são muitas artistas e atletas negras, das diferentes áreas e modalidades, que emocionaram e encheram de orgulho o país com sua criatividade, talento e garra.

6 – República das Mulheres

Em terras brasileiras, desde que aconteceram os primeiros contatos entre os povos dos três continentes, a pretensa superioridade étnica dos europeus fez com que os indígenas e africanos fossem considerados “meros selvagens”. Seus códigos, hábitos, culturas e costumes, foram vistos como inferiores àqueles estabelecidos pelas cortes do velho mundo.

No período pós-abolição os nocivos estereótipos atribuídos às populações de origem africana foram sistematicamente reforçados. Sentindo literalmente na pele a discriminação racial, muitos homens e mulheres negras reafirmaram seus valores estéticos e através da beleza dos seus signos ancestrais de pertencimento, determinaram e singularizaram diferentes modos do ser brasileiro. Em todas as regiões do país, empreenderam iniciativas voltadas para a escolarização de suas crianças e criaram novos mecanismos de integração. Fundaram jornais, clubes e organizações que promoveram a união e a abertura de caminhos para a superação das injustiças advindas do preconceito de cor.

As afro-descendentes, ainda que sem o devido reconhecimento, desempenharam múltiplas e fundamentais funções no desenvolvimento e na consolidação social, cultural e econômica da então recém instaurada República Federativa do Brasil. São incontáveis os exemplos de dignidade e força de mulheres negras que, ao longo do século XX, ajudaram a romper as barreiras do sexismo e da intolerância as diferenças.